Uma vez eu estava lendo Paul Auster. O personagem estava fazendo faculdade e morava num apartamento onde só tinham caixas e mais caixas de livros; quando ele ficava sem dinheiro, vendia alguns num sebo. A faculdade acabou, e os livros também; ele ficou um tempo sozinho no apartamento, sem nada, morrendo. Depois ele foi mendigar no central park e acabou trabalhando pra um velho cego e mutilado que começou a contar sobre sua comunhão com a natureza ermitando no deserto e eu mandei o livro tomar no cu, onde ele merecia. Mas aquela primeira metade descreve exatamente, com precisão, o agora, o que eu sou. Parece mais triste do que eu devia ser; seria mesmo, se fosse triste. Soube que a minha empregada comentou outro dia que eu não estou nem aí pra vida. Ela disse isso no bom sentido de um jeito gostoso. Sobre como eu gosto de ficar assistindo tevê e cantarolando baixinho (porque eu não vou obrigar ninguém a ouvir meu desafinamento o tempo todo). Então, basicamente, enquanto eu não tiver nenhuma idéia muito melhor, eu vou passar um tempinho aqui, morrendo. E cantando baixinho.
(*Promentalshitbackwashpsychosis Enema Squad)
In Vitro
"Depois", ele disse, "você pode descer ao laboratório e conhecer minhas opiniões". A jovem achou aquilo uma graça e aceitou o convite para jantar na casa do professor, mesmo sendo esperta o suficiente para traduzir os olhares dele. Quando ela elogiou o risoto, ele gentilmente fechou a mão em torno do hálito que saia da boca dela e formou com carinho uma bolinha, como se faz com brigadeiro. "Eis a primeira opinião que você me dá. Podemos descer agora para colocar ela na colônia, e você vai ver como todas as minhas opiniões estão indo." O laboratório era particularmente escuro para um lugar de observação, mas o professor explicou que algumas opiniões preferiam justamente a ambiguidade das sombras. Abriu uma grande cortina vermelha de veludo, e por trás dela se revelou uma imensa caixa de vidro, com tubos, andares, escadas, rampas e rodas de exercícios por onde dezenas de opiniões se agitavam freneticamente. Pôs Estava-uma-delícia, que agora era já uma bolinha rosa bem felpuda para convivar com seus pares, por uma portinhola na parte mais baixa da gaiola. Rapidamente, uma imensa bola negra, lisa e rija rolou para cima da jovem opinião, que tremeu apavorada. Sua doadora sentiu sua dor, mas apenas observou. Uma opinião achatada e cor de creme pareceu sair do nada e ficou entre David e Golias. Parecia muito importante, pois a outra parou na hora. O professor explicou que eram Não-gosto-de-gente-estranha e A-paz-é-o-melhor-caminho, e que elas faziam essa cena o tempo todo. Depois apontou outras de suas favoritas naquele nível: Prefiro-o-inverno era uma criatura prismóide azul tão clara que parecia branco; Odeio-pagode e Adoro-pagode eram mais parecidas do que queriam aceitar e PauloCoelho-é-um-charlatão era apenas um pontinho minúsculo, mas corria com mais energia do que qualquer opinião jovem e forte.
"Convém notar que esse ambiente pacífico existe porque só mantenho juntas opiniões amenas. No começo, guardavamos todas numa mesma gaiola e tudo parecia bem. Até que elas começaram a formar grupos. As liberais contra as conservadoras primeiro, as libertárias contra as liberais depois, e só Deus sabe que mais teríamos se as deixassemos lá por mais tempo! As opiniões radicais ficam em gaiolas ao fundo. Sim, podemos observá-las agora mesmo! Note também que olhamos apenas opiniões jovens de espírito. Embora não seja possível estabelecer uma expectativa de vida para cada opinião, parece haver uma estreita conexão entre esses espécimes e os eventos ocorridos na vida de seus 'pais' ideológicos. Olhe por exemplo aquela ali - apontou para uma opinião oval, metade preta e metade branca, toda enrugada e cabisbaixa, cheia de teias de aranha - Sexo-por-prazer-é-pecado me foi dada por um jovem do grupo religioso da universidade. Veja como ela esta quase morta, já. Soube, dois dias depois de ela começar a definhar, que uma nova garota no grupo, de roupas relativamente ousadas e atitude condescendente arrancou suspiros do rapaz. Já vai tarde, odiava essa aí!"
A estudante chama a atenção para outro vidro, Onde uma opinião perfeitamente redonda e azul reside num leito médico, embrulhada num cobertor e cheia de controladores de umidade e temperatura. Não-à-guerra parece estar muito doente, e o professor tem feito o possível para evitar que ela sucumba, mas canja de galinha não cura opiniões, nem dos males mais simples. Dois metros mais para lá, Supremacia-do-ocidente! tem mais um espasmo enfurecido. Parece uma estrela do mar listrada de azul, vermelho e branco, e investe contra as paredes de vidro com fúria: é uma das mais perigosas e frequentemente tem de ser sedada. O anestéstico foi aplicado a pouco, logo fará efeito, não há com o que se preocupar, por enquanto.
Ele, orgulhoso descreve centenas de opiniões e fala das possibilidades imensas que a pesquisa sobre elas traz no mercado e na academia. Elogia diversas vezes o interesse e capacidade de sua acompanhante em acompanhar a experiência, e sugere que ela entre para sua equipe. Depois, sobem ao quarto para ler um livro. Não é preciso nenhuma investigação acadêmica para concluir que o professor atingiu seu objetivo pessoal nessa experiência. Quando ela vai fumar um cigarro, o velho corpo do homem já se rendeu ao esforço e adormece ao seu lado. Curiosa, ela tenta segurar o hálito dele enquanto ronca, e dá forma ao punhado de ar vivo que sente em suas mãos. Súbito que sobe por seus dedos uma nova opiniãozinha, amarelada e feminina, com silhueta invejável. A pequena criatura escala o braço, fazendo cócegas, chega ao ombro, pinica para superar o pescoço e finalmente se dependura na orelha direita. Entrando lá, se desfaz em um sopro que parece a voz dele. Essa-ninfeta-vadia-dá-pra-quem-se-exibe. A "ninfeta vadia" fica enfurecida. Se veste rapidamente, pega todo o dinheiro que ele tinha na carteira e sai na rua em busca de um taxi.
Na manhã seguinte, procurando por algum bilhete ou sinal de consideração de sua amante, o professor é mordido por uma opinião cinzenta, comprida e dentuça. Coloca-a nas gaiolas com certo contentamento. Perdeu uma amante, mas ganhou um belíssimo exemplar de Homem-não-presta.
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