Caolho abriu a porta do passageiro para que eu entrasse. O interior daquele carro parecia o lugar mais seguro de todo o mundo, dada a espessura do capô, a firmeza da estrutura e a potência do motor. Era quase como se viajasse num tanque de guerra. Ele deu a partida e acendeu um cigarro mantendo as janelas fechadas, fiz uma careta ao me incomodar com a fumaça, ele me encarou com reprovação. Passado um tempo, dando voltas pouco compreensivas naquele bairro irreal, o silêncio me constrangeu. Perguntei.
- Há quanto tempo você está nessa?
- Não estou. Nunca estive. Só faço alguns favores.
- Certo. Como eu posso te chamar?
- Você disse seu nome para alguém? Até agora? Uma vez?
- Não.
- Ainda bem. Pode me chamar de Caolho, como já está fazendo por dentro.
Apagou o cigarro no cinzeiro da porta e prosseguiu o caminho.
Depois de meia hora, saímos dos prédios tortos e da geografia desproporcionada. Chegamos numa parte da cidade cuja existência real eu já era capaz de admitir, embora todas as construções parecessem extremamente antigas e sombrias. Era o centro, era noite e isso era de se esperar, mas mesmo assim, dessa vez, meus olhos viam algo a mais no escuro. As sombras das sombras, acho. Novos tons de preto transformaram minha cidade numa imitação de Gotham. Caolho desacelerou e entrou em estado de alerta. Desligou os faróis e conduziu o carro com uma leveza e silêncio inesperados. Eu sempre tive por irracional o meu medo de silêncio, mas ao assistir aquele motorista espalhafatoso procurando ao máximo não ser notado, eu finalmente entendi qual era a origem nada tola desse temor. Num mundo onde não se crê em tranqüilidade, a quietude indica perigo.
Entramos num beco obscuro, com rua ainda de paralelepípedos. Não circulavam por ele nem as figuras noturnas que perambulam na região. Havia uma escada que descia para algo, que poderia ser um clube ou bordel. Caolho me orientou.
- Põe o chapéu e abaixa a aba da frente, pra sombra esconder o seu rosto. Diz na porta que as ações da Varig vão subir; vão te dizer 'você tá é louco'; diga que não, que veio pela bebida, e você está dentro. Não ache que foi fácil planejar isso, quatro pessoas quase morreram pra você saber a senha de hoje. Lá dentro não converse muito, encontre o desgraçado que te sacaneou, aposto que ele estará bebendo uísque. Você vai saber o que fazer dessa hora em diante. Me encontre de novo aqui fora em exata meia hora. Eu não vou esperar nem me atrasar. Não estarei aqui se você vier antes. Exata meia hora, ou você vai ter que se virar sozinho. Quatro pessoas quase morreram para te ajudar, e eu não serei o primeiro a conseguir.
Segui a risca as instruções do Caolho para adentrar aquele espaço. Era horrendo. Parecia um Cabaré cujo glamour fora drenado há décadas, trocado por uma concepção patética de higiene. Toda a madeira dos móveis era ridiculamente nova, envernizada, clara e homogênea. As lâmpadas eram todas econômicas, brancas azuladas. Algumas dezenas de Homens do Saco (também do sexo feminino) bebiam recatadamente e conversavam sem fazer muito barulho. O disfarce era relativamente eficiente, pois eles não pareciam se importunar muito com minha presença. A maioria lá fazia o estilo jovem executivo, com ternos listrados, gravatas, tailleurs e coques reluzentes. Algumas exceções interagiam livremente, de igual para igual no ambiente. Um ou dois homens do saco mais tradicionais, trajando o clássico mendigo esfarrapado, uma velha cigana acolá, um mestre de picadeiro escondido no canto e dessa forma minha aparência não era tão gritante.
Dei duas voltas no lugar, na segunda pedi uma gin-tônica no balcão para não parecer suspeito. Finalmente, notei Jeremias sentado numa mesa próxima ao palco vazio, olhando fixamente para a cortina de veludo. Levou à mão as coxas, que tremiam, enquanto batia o pé nervosamente no chão. Estava tão concentrado em sua ansiedade que não notou quando sentei a mesa logo atrás. Fiquei ali, observando-o por alguns minutos, imaginando o que poderia fazer a seu respeito.
Luzes se acenderam sobre o palco; às da casa se apagaram. Os Homens do Saco se aquietaram e voltaram seus olhos para a atração principal. Cortina subindo, revela uma menina, uns oito anos, vestidinho rosa com babados bucólicos, cachos que só uma avó poderia amar, e a mais terrível expressão de pânico. Uma corda amarrada em dois postes mecânicos começou a girar como se estivesse sendo conduzida por outras duas garotas; o sistema de som do lugar começou a tocar um coro de crianças desafinadas. A estrela, quase em desespero, começa a pular corda. A música se torna insuportável.
Um homem bateu à minha porta
(Eu começo a achar tudo aquilo ridículo demais)
e eu a-
(Então noto o olhar, o prazer pérfido de Jeremias e todos os homens do saco. Uma mulher de tailleur lambe os beiços.)
-bri!
(A metralhadora escondida junto ao meu peito parece ficar quente)
Senhoras e senhores
(Minhas pernas me erguem sozinhas, e se flexionam em prontidão)
Pulem num pé só!
(A menina obedece à canção. Aquele calor da metralhadora se transforma em fúria dentro de mim)
Senhoras e senhores
(Todo o meu corpo esquenta e meus músculos se tensionam. É como se tivesse muito mais energia fluindo pelo meu corpo do que deveria.)
Encostem a mão no chão.
(Eu salto para perto de Jeremias.)
Senhoras e senhores
(Jogo a mesa sobre ele, com uma força que nunca tive. O desgraçado cai no chão imóvel.)
Dêem uma rodadinha
(Todas as atenções se voltam para mim.)
E vá
(A menina corre, tentando fugir do palco)
Pro olho
(Os homens do saco se erguem e vem em minha direção. Alguns levantam pistolas. Estou cercado. A menina esbarra num segurança, que a segura refém sobre o palco.)
Da rua!
lui malucão
RispondiEliminarecebi o bip, vou sim, nem que seja só pra morder essas bochechas fofas!
RispondiElimina(*respondi seu comentário no blog)