mercoledì, ottobre 13, 2004

Alguém não deve

1988
A casa está velha. Dizem que só coisas orgânicas ficam fedidas com o tempo, mas é mentira. Ou vai ver que uma casa é algo orgânico, dessas que se decompõe, morre um pouco a cada dia, que nem gente, iogurte e algas. O teto tá todo esburacado, chove mais lá dentro do que na rua. Marília não pode esperar pra sair dali. É tão longe de tudo, perto do rio. Tem mosquitos demais. Os pais de Marília compraram um apartamento. Novinho, não fede. É tão alto que o vento refresca todos os dias. Fantasia a menina que de tão alto, fica onde a chuva não alcança, no topo do mundo, a não ser que chuva suba. É tão feliz, se livrar desse quintal fedido, desses moleques de periferia que estragam suas brincadeiras, se proteger no alto, no lugar mais alto. Papai nunca quis se mudar, ele gosta de morar em casa, mas compraram o terrenão da frente, vão ter obras...
- Vai ser algo grande, barulhento e movimentado. Se for pra perder o sossego, vamos perder de vez e pelo menos morar perto.
Pra ela, não há perda nenhuma. Sossego é incômodo, coisa de gente velha que já teve muitos dias pra morrer. Marília ainda tem oito anos, e vai ser o máximo. O melhor, morar perto de todos os lugares interessantes.
Uma vez vendida a casa, uma placa enorme, instalam no dia da mudança, dá uma confusão engraçadíssima com o caminhão tentando passar e aqueles homens pendurando a placa, numa rua tão estreita. Gargalhadas. Mas, o que é naquela placa? Aqui, é aqui mesmo seu moço, tem certeza? O maior da américa latina meeeesmo? Praçade alimentação, cinema, fliperama? Lojas de roupas e brinquedos! Pai, des-vende a casa! Vamos ficar aqui, é o melhor lugar no mundo! Não, não quero mais ficar aqui! Você não quer que a gente fique feliz?

Não, não parece que quer.

1993
Tchau. Já vai tarde. E vai bem. Não que a gente não goste de você, mas há de se convir que não estava dando. As menias até já sabem e acreditam nisso. Você também, né? Fala que não, agora, no ato, porque está com medo, mas a gente concordou, querido, que isso ia ser o melhor pra nós quatro. Te chamei de querido sim, claro que eu ainda te amo, mas não daquele jeito, não daquele jeito que basta. Não basta. Era impossível, todo o mundo sabe disso. Boa sorte. Vai ser melhor agora. Vai lá dar um beijo nas garotas.

Porta fecha, o pai vai embora.

- Ah, vai ser tão bom, você vai ficar com Lívia no seu quarto mesmo?
- Pelo menos até ela ser mocinha pra dividir o quarto com você.
- Ai, brigada mãe, eu estou tão feliz! E quando a gente vai visitar o papai?
- Bom querida... hã... na clínica... só aceitam visitas no domingo...
-Clínica? Que clínica? Quer dizer... que quando a gente resolveu o problema dessa família... que todas essas brigas, os acordos...
- Resolveram o nosso problema, Marília, não o dele.
- Que... bosta!

2002
Formatura. Não convidei o papai, é claro. Não convidaria nem se estivesse feliz. Estou, finalmente formada, Marília Pacheco Freitas, advogada formada, profissional competente, pronta pro mundo. Capaz, inteligente, jovem e disposta a aprender. E mais apavorada do que qualquer coisa que eu já tenha visto antes. Uma bosta de um diploma, de uma faculdade, passei reto. Serviu pra nada, e agora, acabaram as desculpas. Nem meu pai posso culpar. Uma mulher adulta não pode ser incompetente e antiprofissional por que sofre de pai ausente. É patético. Eu estava tão confiante. Podem não acreditar, mas alguém fez isso comigo. Me atirou na cara bem hoje que cinco anos na faculdade não significam nada. Alguém não deve gostar que a gente fique feliz. Tinha um palhaço ontem na rua. Ele deu um bicho de balão lindo pra uma menininha, o melhor sorriso que eu já vi. Aí a mãe da menina foi um pouco grossa com ele. Ficou magoado, estava um pouco alto. Estourou o balão, prantos. Ele era esse alguém. Igual ao meu pai. Mesmo quando não está, ele estrga tudo, só de mencionar. Ele não vai me deixar ser feliz.

2004
Velho idiota morreu. Livre, jovem e feliz. Feliz e chorando feito uma abestalhada pelo cadáver. Eu quero ser feliz, quero ser livre, porra! Estou, porque não me alegro. Sempre foi ele, sempre foi, que nunca queria nenhuma alegria na vida de ninguém, que sempre estragava tudo! Não devia haver mais choro sem esse traste! A não ser... a não ser que mais alguém não queira que a gente seja feliz... que tenha outra pessoa sempre achando o lado ruim em tudo o que me acontece. Ah, mas se eu pego a desgraçada.

2005
Marília entendeu e se questionou se isso foi um juraento de suicídio.
Mas isso é futuro.

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